Trabalhar no Hotel Viber (o hotel que vibra em todas as dimensões!) é empolgante, mágico e gratificante... Pelo menos, é isso que querem que você acredite. A empresa interdimensional é gerenciada por três chefes que, cada um à sua maneira, perturbam o bem-estar dos funcionários. Mas isso está prestes a mudar. Em “Preparando o banquete”, Bia Chaves constrói uma narrativa intrigante e criativa sobre vingança no ambiente corporativo. Confira a seguir!
Preparando o banquete
Bia Chaves
Sexta feira, 36h23m16s (fuso-horário da dimensão Zeta) – 37815 nanossegundos para o banquete.
Os dedos longos e nodosos, com formato e textura de galhos de árvore, pressionavam desajeitadamente o teclado digital, com tanta tensão e pressa que o sistema interpretou como invasão de dados e cobriu a tela com uma luz azul restritiva. Cony sequer teve tempo de se desesperar; no mesmo instante, o telefone soou. Ela atendeu com a voz que treinou por semanas:
— Hotel Viber, o hotel que vibra por entre todas as dimensões, proporcionando a você as viagens mais inesquecíveis. Como posso ajudar?
Mesmo com todo o treinamento, ainda soou ridícula.
— Boa noite — disse a voz anasalada do outro lado. — Veja, querida, a dimensão ICK vai entrar em colapso na semana que vem, e eu e minha família gostaríamos de assistir o apocalipse de perto. Quanto custa uma diária?
A negociação foi rápida e limpa, um alívio e uma raridade naquele trabalho. Ao desligar o telefone, Cony olhou de relance para sua colega, que estava com os olhos vazios vidrados na tela do monitor, e antes que pudesse fazer qualquer comentário, sentiu uma carícia intrusa em seus cabelos. Congelou, embora já soubesse o que esperar:
— Estás bonita demais hoje, Cony. Assim não consigo me concentrar no trabalho.
Cony encarou o rosto depenado e os olhos imensos de Coruja, um de seus gerentes. Já fazia um tempo que aqueles olhos grandes estavam fixos em seu rosto. Ela não se importou, não de início. Coruja era o mais manso dos chefes. O mais simpático, o mais…
— O que achas de nos encontrarmos na sala do reator mais tarde? — ele sussurrou, pinçando entre as garras uma das folhas amarelas dos cabelos de Cony.
… o mais gentil.
— Claro. — A menina sorriu piscando rápido os cílios longos e tomando uma das mãos de penas brancas de Coruja. Fingiu fazer uma cara de preocupação. — Nossa, suas garras estão mal aparadas. Eu poderia dar um jeito nisso…
— Podemos resolver isso mais tarde. — Coruja sorriu e piscou o olho gigantesco antes de sair. Acenou brevemente com a cabeça para a colega de Cony — era uma coisinha pequena vinda de uma dimensão de pessoas mais pensadoras que faladoras, e nunca havia proferido uma única palavra dentro do Hotel. Por isso, era fácil fazer qualquer coisa em sua presença.
Coruja se afastou. Cony, satisfeita, esfregou seu prêmio entre os dedos: uma garra longa e cinzenta. Colocou-a no tubo de sucção com um bilhete para João Colmeia: minha parte está completa.
E piscou para sua colega, que apenas sorriu de volta, em silêncio. Era fácil fazer qualquer coisa na frente dela.
***
Sábado, 27h18m13s (fuso-horário da dimensão Zeta) – 9871 nanossegundos para o banquete.
— Bota mais plutônio nisso aí, Ashta. Tá muito fraco.
Ashta arreganhou as presas e sacudiu a coqueteleira com mais força. Quando começou a trabalhar naquele hotel dimensional, o mais prestigiado do universo, só pensava no quanto seu currículo brilharia quando seus colegas de bar fossem os especialistas dentre os especialistas em bebidas com café. Agora tudo o que brilhava era seu suor.
Estava adicionando mais plutônio quando a mão borrachuda se espalmou sobre o balcão.
— Meus baristas favoritos! — Boneco sorriu seu sorriso ofuscante, que movimentava apenas a boca. — Como estão?
O colega de Ashta se esgueirou para dentro da cafeteria, deixando-a sozinha para lidar com o gerente mais jovial e amigável. Jovial não era um exagero: era impossível saber a idade de Boneco. Abençoado com uma aparência bem aceita em quase todas as dimensões, havia se aperfeiçoado e aprimorado mais ainda, até parecer irreal de tão perfeito.
— Os clientes estavam reclamando do drink aguado, viu — Boneco avisou, sempre com o largo sorriso. — Lembre-se: quem está com jet-lag interdimensional não quer ser presenteado com drink sem graça!
E bebeu avidamente o Plutônio Iced Mocha de Ashta; a garganta nem se moveu, como se não passasse de um cano. Quando ele se afastou, a barista sorriu consigo mesma. Passou um cotonete pela saliva lambuzada no copo e enviou no tubo de sucção para João Colmeia.
Minha parte está completa.
***
Sábado, 03h28m04s (fuso-horário da dimensão Zeta) – 393 nanossegundos para o banquete.
— E tu precisas controlar melhor teus recepcionistas, João Colmeia — Aretusa falou pela enésima vez, cerrando os olhos para verificar cada centímetro da cerâmica lavada na pia. No meio da frase, seus olhos se reviraram nas órbitas, e no decorrer de alguns segundos a bruxa escutou todas as conversas de seus funcionários espalhados pelo Hotel. Quando terminou, estava com uma expressão azeda, decidida a descontar o azedume em mais alguém. — Os atendentes do Andar Mapa Astral acham que estão de férias. Vamos consertar isso.
Deixou João Colmeia sentado com seu Café de Ozônio. Ao lado, Bonifácio, um auxiliar da limpeza que agora lavava novamente a cerâmica duramente criticada, olhou para o colega com desgosto:
— Não ligo que ela seja uma das bruxas mais poderosas das dimensões regidas pela constelação de Hécate e blá-blá-blá. Ela está estragando o ambiente de trabalho.
João Colmeia abriu um sorriso tranquilizador para o colega, e Bonifácio imediatamente relaxou. Colmeia podia ser um funcionário antigo, mas era gente como eles. Estava no controle. Resolveria a situação.
Observou-o erguer algo entre os dedos. Um fio longo e sebento de cabelo. Impossível não remeter diretamente à massaroca na cabeça de Aretusa.
— Não se preocupe, meu amigo — João Colmeia sussurrou, as abelhas em torno de sua cabeça girando preguiçosamente. — Em algumas horas, tudo mudará.
***
Domingo, 00h07m13s (fuso-horário da dimensão Zeta) – Hora do banquete!
— Aretusa está o quê? — Boneco parecia estar querendo formar uma expressão ferida, mas era impossível em seu rosto paralisado e inexpressivo. — Com um cliente, na sala do reator?
— Sim, chefe. — Ashta assentiu de olhos arregalados. — Acabei de saber por João Colmeia.
— Como ela pôde… — Boneco já ia em direção ao elevador sônico, pronto para confrontar a amante em meio a sua cruel traição. — Depois de tudo o que passamos…
Todos os funcionários exibiam sorrisos escondidos enquanto assistiam, de lugares diferentes, os três chefes se dirigirem à sala do reator. João Colmeia acompanhava tudo do monitor da recepção, tomando seu Café de Ozônio.
Quando os três gerentes se aproximaram da sala, estavam sozinhos. E claramente nenhum esperava ver o outro ali nessas condições. Boneco olhou para sua amada. Confuso, questionou:
— Aretusa, como…? Onde está o cliente?
— Que cliente? — Aretusa piscou. — Me disseram que o gerente-geral queria me encontrar aqui!
— Eu achei que ia encontrar… — Coruja piscou os olhões. — Vocês estão ouvindo isso?
A porta do reator, soprada por um vento forte, foi se abrindo, deixando entrever seu conteúdo.
Acontece que manter um hotel interdimensional funcionando demandava muita energia. Para movimentá-lo, então, capturou-se um ser ancestral devorador de mundos, que, se regularmente alimentado, fazia com que o campo magnético do estabelecimento se mantivesse estável. Seu corpo era composto unicamente por uma bocarra cheia de presas.
Que estava muito aberta agora.
— Calma, rapaz… — Boneco sorriu seu sorriso plástico e retirou um petisco do bolso com muita tranquilidade. — Aqui. Somos nós, você sabe.
Ah, o bicho sabia. Há meses vinha sendo alimentado com cabelos, saliva, pedaços de unha. Tinha tomado gosto pela coisa. Agora estava faminto pela refeição completa. Rosnou e lambeu suas presas, ansioso.
— Amigão? — Boneco perguntou, incerto. — Ei…
A porta se fechou num baque. Na sala à prova de som, os gritos foram muito bem abafados.
***
Duas semanas após o banquete; sexta, 58h16m78s (fuso-horário da dimensão Zeta).
— Não entendo vocês. Vivem na moleza desde que eu assumi, e ainda assim não trabalham direito. — João Colmeia bebericava alegremente seu Café de Ozônio, coçando o mel em seus cabelos. Observava tudo confortavelmente pelo monitor e através dos comunicadores deixou sua voz amigável ressoar: — Bar, tô vendo muito relaxamento nessa preparação de drinks. Limpeza, vocês chamam isso de polimento? Me coloquem em contato com a cozinha, por favor.
Cony e os demais recepcionistas assentiram num amargo silêncio. Um grupo de clientes acabava de entrar, e Cony precisou conter suas lágrimas de seiva para formar um sorriso.
As coisas haviam melhorado muito, disse a si mesma. Tudo estava muito melhor.
Enquanto cadastrava os novos hóspedes, olhou para sua colega silenciosa, se perguntando, não pela primeira vez, o que pensava e por que aceitava tudo em tamanho silêncio.
A menina, por sua vez, segurava um pequeno objeto em seus dedos pálidos. Uma abelha, cujas asas tremelicantes indicavam os derradeiros momentos de vida. Mais tarde, o bichinho teria um específico e cruel destino.
Ninguém reparou. A colega da recepção não proferia palavras. E, por isso, tudo era muito mais fácil perto dela.
Bia Chaves é uma paraense que tenta conciliar suas aventuras em sala de aula, como professora, com seus escritos, que viajam entre mundos mágicos e dimensões alternativas. Já tem publicados três livros solos e textos espalhados por antologias e revistas. E torce pra que seja só o começo.
Edição: Luísa Montenegro
Revisão: Moacir Fio
Ilustração: Nathália Pimentel