Uma agente mortuária é chamada para preparar o corpo de uma velha conhecida. Em “Pequeno ritual do adeus”, Ana Cristina Rodrigues entrega uma narrativa surpreendente, estranha e tocante. Confira a seguir!
Pequeno ritual do adeus
Ana Cristina Rodrigues
Mal tinha acabado de amanhecer quando bateram na minha porta. Era urgente, como sempre era. Como sempre iria ser. Peguei a bolsa e saí, dando um adeus corrido para minha esposa, que ainda dormia.
Nos primeiros anos, ela acordava e ficava preocupada. Mas se acostumou, como todos nós nos acostumamos à Vida depois da Morte.
— Quem foi, Natália?
Ela caminhava com cuidado no pavimento escorregadio do asfalto gasto. Não se virou para mim, porém a voz denunciava as lágrimas que não queria deixar correr.
— A mãe. Vamos rápido, ela sumiu ontem ao anoitecer e só encontramos o corpo agora.
Não falei mais nada; nem dei pêsames, nem lamentei. A vida tinha nos tirado os pequenos ritos e gestos de condolência e de lamentação. Mal e mal conseguíamos nos agarrar a um último ritual funerário e, mesmo assim, o preço era alto.
Pagávamos para manter nossa humanidade restante.
A construção onde a família de Natália morava já foi uma loja de departamentos grande e espaçosa. Tornou-se um centro de acolhimento, dirigido por três gerações, que naquela noite tornaram-se duas. Dona Sônia estava parada perto da porta, facão na mão e expressão vazia, e me cumprimentou mais por obrigação do que qualquer coisa. Ninguém quer ver a Mulher dos Mortos.
Nossos passos ecoaram no piso, limpo, apesar de tudo. Os balcões foram rearrumados para organizar a loja em espaços de ocupação e convívio. Comprei quase todos os utensílios da minha casa ali, antes de tudo acabar; sei para onde Natália está me levando. O armazém, com saída para a área de carga e descarga, tinha sido transformado em necrotério. Não precisávamos mais de geladeiras para guardar os corpos, pois não havia mais tempo para deixá-los apodrecer.
O barulho da tranca atrás de mim sempre me dava arrepios. Era um lembrete, bem escandaloso, de que, a partir daquele momento, éramos só eu e o corpo. Em outros tempos, eu estaria completamente só. Não mais.
Aline tinha sido minha colega de escola, não das mais próximas, nem das mais distantes. Conversas esparsas, “vamos marcar alguma coisa”, “a gente se vê” e “como vai a menina” eram o máximo de contato que tivemos depois de formadas. Ver seu corpo estendido sobre uma mesa, nu e despido de qualquer dignidade, com um ferimento viscoso no abdômen, deveria me incomodar.
Eu não permitia que incomodasse. Afinal, eu era a única técnica mortuária da cidade — quem sabe a única do mundo. Infelizmente, nos últimos tempos meus serviços tinham se tornado cada vez mais necessários e frequentes.
Examinei a pele fria e os músculos rígidos. Não havia sinal de infecção ou inflamação; as manchas e pústulas que a praga deixava em suas vítimas não tinham surgido. Isso poderia significar que o corpo dela ficaria assim, imóvel e morto, por mais algumas horas. Mas certezas tinham morrido junto com o mundo antigo.
— Sinto muito, Aline. Pelo menos você vai ter um velório digno, mesmo que rápido.
Antes, eu teria uma noite para deixar o corpo com a aparência pacífica que confortaria os familiares. Virei o corpo de barriga para baixo e comecei o corte, da nuca até o cóccix. O sangue escorreu viscoso e escuro, um cheiro amargo que denunciava o início do processo de não-decomposição ao entrar em contato com o ar.
Olhei para o relógio na parede. Teria uns dez minutos, no máximo, o que era mais do que suficiente. Separei as vértebras com pequenos cortes profundos, que depois enchi de gaze. Costurei com cuidado, pontos pequenos, mas apressados, antes de virar o corpo de novo.
Enrolei bandagens ao redor do ferimento antes de envolvê-la na mortalha. Roupas se tornaram raras demais para serem desperdiçadas com quem não precisaria mais delas. Dei uma última olhada no rosto enquanto remexia na bolsa, procurando a maquiagem. Antes, esse era o foco do meu trabalho; agora, apenas um detalhe. Algumas horas de velório com um corpo que parecia estar realmente morto era mais tranquilizador do que velar um simulacro de vida.
Enquanto misturava a base para ficar no tom certo, algo me preocupou. Os olhos de Aline estavam abertos, mas a primeira coisa que eu sempre fazia era fechá-los. Talvez fosse apenas um reflexo involuntário. Estendi a mão para fechá-los e dedos frios se apertaram contra o meu pulso. Em um reflexo, olhei para o relógio. Só tinham se passado seis minutos. Ou eu calculei errado, ou as infecções estavam se tornando mais rápidas.
Sempre odiei estar errada. Com minha vida em jogo, o ódio só aumentava. A outra mão procurava meus olhos, o tronco inerte na mesa por causa dos cortes na espinha. O velório não seria tão demorado, nem tão bonito quanto eu tencionava, mas pelo menos eu estaria viva para assistir. Desviando da mão em garra que me procurava e mantendo a minha mão presa longe dos dentes malcheirosos da morta, puxei da minha bolsa o facão, igual ao de Dona Sônia, e golpeei sem pensar muito as articulações dos braços da minha antiga colega.
Os membros se imobilizaram, mas o corpo continuava a convulsionar e tremer. Torcendo para ter linha o bastante, separei a cabeça do tronco com três golpes não muito precisos, e esperei. Os tremores pararam quase no mesmo instante. Costurei a cabeça no tronco com pontos frouxos, deixando espaço suficiente para que a regeneração demorasse a acontecer. Puxei um pouco mais da mortalha, cobrindo o ferimento. Tinha ficado bom? Não. Deixei assim mesmo? Deixei.
O importante era ter um corpo para velar.
O velório foi rápido e triste, com duas rezadeiras a postos caso todas as minhas precauções dessem errado.
Não deram.
Aline permaneceu morta até ser colocada na fogueira acesa por Natália, ao som de cantos e choros. Ao longe, cachorros uivavam, enquanto os sentinelas nos muros trocavam de turno.
A mortalha era preparada para ajudar a disfarçar o cheiro da carne queimada. Pequenos costumes que nos ajudaram a não enlouquecer e manter a nossa humanidade. Dona Sônia chegou perto de mim.
— Quanto lhe devo?
— Nada. Aline foi minha colega.
— Deixa de merda. Vocês mal se falavam.
— A senhora me deve uma, então. Quero nada agora.
Ela só assentiu.
— Descobriram por que ela tava lá fora?
— Foi encontrar alguém, quis buscar alguma coisa de noite? Vai saber. Ela era teimosa, não ouvia ninguém, deu nisso. Pelo menos, encontramos o corpo antes do pior.
Bati a mão no ombro dela e saí, pegando o caminho de volta para minha casa. Lembrei do pior, que aconteceu com meu pai, pego no meio do turno dele no necrotério, bem no começo da Morte.
Meu adeus a ele foi jogando ácido e dissolvendo o corpo do homem que me criou. Dez anos e nunca chorei por ele. Por isso, enquanto alguns se dedicaram a tentar descobrir a causa ou a cura, outros a proteger os agrupamentos humanos, eu tomei como missão permitir que filhos se despedissem dos pais do jeito que dava.
Apagava meu sofrimento aos poucos, a cada velório, a cada corpo pranteado. A cada pequeno ritual de adeus.
Ana Cristina Rodrigues é escritora, editora, tradutora, fã de Ficção Científica e Fantasia.
Edição: Luísa Montenegro
Revisão: Moacir Fio
Ilustração: Nathália Pimentel