No interior da Bahia, a festa de Santa Luzia é comemorada afundando um olho de vidro em um copo de aguardente. A pequena Josi recorre a este altar no dia da comemoração para pedir socorro. Em “luzia que tudo vê”, leonardo crusoé constrói um texto sensível com um narrador inesperado. Confira a seguir!
luzia que tudo vê
leonardo crusoé
tu visse?
a menina se inclina sobre o copo, sobre mim.
tu visse, agora, santa?
eu não poderia responder. não tenho bocas, me derramam e me jogam fora.
o que será que a senhora responderá, santa?
a menina enfia o dedo em mim. o olho de vidro no fundo do copo balança.
a senhora viu, santa? por favor, veja agora, me dê uma resposta, santa!
ela me lambe, o bocadinho que respingou no dedo, ela não percebe que uma mulher está atrás.
está tomando a aguardente, josi?
a menina treme de medo.
não, tia!
a tia avança e dá um tapa na cara da menina.
não, tia! eu não fiz nada!
nem no dia de santa luzia você se comporta menina! deixa isso quieto!
a menina corre, aos prantos. a mulher respira fundo e observa-me. ainda estou inteiro, nunca me desfaço, os poucos servidos no copo, a minha garrafa permanece intacta. eu estou aqui, até mesmo quando me acabam.
o homem, que antes estava na sala, volta. ele beija a mulher na bochecha.
o que ela estava fazendo?
metendo o dedo no altar de santa luzia.
fazendo o quê?
acho que estava tomando a aguardente e mexendo no olho.
o olho já se aquietou aqui no copo. não gira mais. eu o envolvo no líquido e somos protegidos pelo vidro.
tem que contar pra mãe.
não precisa, ela vai apanhar.
é bom que aprende.
a tia saiu. o homem fica. ele cospe no copo. cospe em mim. pensei que me beberia mas escolhe me sujar. mistura tudo com a ponta do dedo. deveria ficar tonto; se eu fosse matéria, ficaria.
minha existência é aqui neste copo: enquanto eles acreditam, eu existo. a aguardente. o olho de luzia, o copo de vidro. estou aqui e fico só aqui, aguardando as saudações.
é só na noite que todos vêm para a sala, me observam. eu vejo o rosto da menina. ela com certeza apanhou, está no colo da velha, com a mão na cara e olhando pro chão. ela olha para copo, o foco dela está no olho que flutua em meu entorno.
começam a reza.
ó santa luzia que preferistes deixar que os vossos olhos fossem vazados.
a menina não fala e toma um tapa leve na mão.
e arrancados antes de negar a fé e conspurcar vossa alma;
ela imita o gesto, como todos, iguais, idênticos. eu vos agradeço, isso me mantém.
e deus, com um milagre extraordinário, vos devolveu outros dois olhos sãos e perfeitos, para recompensar vossa virtude e vossa fé.
gostaria de saudá-los em retorno. mas não posso.
terminam a reza, dão as mãos uns aos outros e partem para fora. não sei o que farão. nunca vi o que tem longe dessas paredes. tudo o que sei é pouco. meu tudo é miséria. é dia de santa luzia. santa que perdeu os olhos. montam o altar com o copo de aguardente e o olho de vidro, representando ela. mas não sou ela. não sou a santa. eu sou o que eles acreditam.
não sou profana. não sou divindade. sou o querer.
querem. logo, existo.
me suplicam. mostra-me tua glória santa luzia.
e eu fico.
não sei quanto tempo passa.
e a noite acaba. eles voltam para a casa. a menina fica longe do homem, ele parece não a ver, mas ela o teme. eu vejo. eu sinto.
ajoelham-se a passar por mim. santa que arranca os olhos porque acredita em deus. santa, é mulher boa. tem seus olhos devolvidos pelo senhor em recompensa de sua bondade. eu sou mulher boa. mas não sou santa.
vão embora aos poucos, somem pela casa com teto de palha. menos a menina. algumas pessoas vão até a sala, arrumam uns panos, um animal de pano, dão comida à menina e ela fica só. deixam-na em sua cama no chão da sala.
quando tudo fica escuro, a menina se levanta e vem até mim.
santa luzia, por favor, eu imploro à senhora.
eu não sei o que ela quer.
a senhora tudo vê, por favor me ajude.
a menina parece que vai chorar.
ele disse tudo aquilo mais cedo, a senhora ouviste, santa?
sua voz é rouca.
eu não ouvi, não sei o que vi, mas eu sinto o desespero na voz dela.
o homem entra na sala.
está bebendo o aguardente da santa de novo, josi?
ela não vira de costas.
não.
seca suas lágrimas.
me prometa.
o homem se aproxima.
não vou contar, só quero um abraço seu. venha, josi, sente no meu colo e me dê um abraço.
a menina chora.
cuidado para sua tia não ouvir. ela pode ficar zangada que você tá acordada até essa hora e bebendo aguardente.
eu sinto a presença dele, a presença da ausência de sua voz. ela se cala. o homem puxa-a pelo braço. a menina tem seu grito abafado.
ela não fala nada. não poderia.
eu não sei sobre tempos. eu não sei sobre minutos ou horas, mas sei sobre agonias. ela sentia muitas agonias.
pobre josi.
ela sai do abraço. o homem começa a se vestir. josi corre até mim.
ela me quebrou. meu últimos vislumbres de ser, foi o vidro partindo-se, a menina pegando em suas mãos trêmulas um dos cacos e enfiando na garganta do homem.
perdi a crença, perdi o vidro e perdi a ideia.
eu morri. junto com o homem. morri feliz.
leonardo crusoé, natural de Salvador, é estudante de direção teatral e escreve quando consegue. Publicou em 2022 o conto “janaína foi nadar”, pela Pulpa. Publicou, também, o romance independente “notabilíssimo senhor canalha” e foi finalista do Prêmio Tâmaras com o poema épico “esconjuros de orfeu à meia noite”, além de escrever os espetáculos “JACINTO MORTO” e “IBEJI DA CASA GRANDE”.
Edição: Wilson Júnior
Revisão: Luísa Montenegro
Ilustração: Nathália Pimentel
Isso foi... intenso.