PULPA: Ano 3, Número 05
Chegou o quinto conto fantasmágico desta temporada.
Em “O Legado”, Saskia Sá nos transporta a Tnwuá, um planeta explorado por humanos e abandonado à própria sorte. Apenas Nwuá pode mudar o destino do planeta – mas, para isso, precisa aceitar o seu legado. Confira a seguir!
O Legado
Saskia Sá
Nwuá se despede de Muhré e sai correndo, balançando as longas tranças brancas que crescem emaranhadas ao redor dos belos chifres encurvados. Deixa a amiga e o hangar movimentado, tomado pelo estrondo ensurdecedor dos motores das naves prateadas que partem de Tnwuá uma atrás da outra. Tem pressa em chegar ao Sobrado dos Ossos para convencer a avó a lhe dar o colar. É só o que precisa para pagar seu embarque e o de Muhré na última espaçonave. Se conseguir convencer a velha, logo estará livre do planeta agonizante.
***
Os pés de Akhdá se arrastam vacilantes pelos degraus da escada construída com um amontoado dos ossos das Tnwuará. A pele azul seca da guardiã do legado é marcada por sulcos profundos, feito um tecido grosso e pregueado. Ela é uma das últimas Tnwuará que ainda resistem à aniquilação provocada pelos colonizadores humanos vindos de um sistema que eles próprios chamam solar. No outrora vivo e pulsante planeta Tnwuá, quiseram criar um novo lar, mas trouxeram com eles seu modo de vida e continuaram a fazer o que faziam no seu mundo, destruindo e matando, até ceifarem a si mesmos no processo ganancioso de tudo possuir.
Ela passa as mãos calejadas na testa alta, de onde despontam chifres majestosos que testemunham sua idade muito avançada. Para um pouco, toma fôlego e se apoia na bengala torta de madeira escura encimada por uma cabeça de cobra dourada engastada no castão. No pescoço de Akhdá, o colar de ossos da primeira Tnwuará atesta que ela é a Guardiã do Legado. Brancos e rajados com partes translúcidas, os ossos emitem uma luz azulada pulsante.
Akhdá olha para o cenário destruído que se estende até o leito seco do que fora o grande Wuaruh e leva a mão até o fecho do colar, formado por um crânio de cobra de cristal azul mordendo a ponta do próprio rabo.
***
Ofegante da corrida, Nwuá vê a avó parada às margens do rio seco e estaca, sentindo o coração sair pela boca e a ansiedade de não saber qual será a reação dela ao seu pedido.
— De nada valeu ser a Guardiã do Legado... — Nwuá resmunga, observando a fragilidade da avó e se preparando para implorar que Akhdá a liberte do seu legado e lhe entregue o colar e a bengala, seus únicos objetos de valor.
Akhdá vê a neta e dá alguns passos em sua direção, sentindo que a vida escoa de seu corpo pelas rachaduras do solo esturricado. Atrás dela, crianças esquálidas e mulheres secas fuçam nos escombros, buscando qualquer coisa que prolongue suas existências miseráveis, mas estão todas ligadas à Tnwuá, que morre e leva junto o seu povo. Ela sabe que também falta pouco para o seu fim, mas ainda precisa convencer Nwuá a assumir o Legado.
As pernas de Akhdá fraquejam e a neta dispara até ela.
— Vó! — Nwuá grita e a apoia, segurando-a pelo braço.
Akhdá esboça um sorriso, mas seus olhos embaçados logo se enchem de lágrimas. Seria mais fácil para o coração endurecido de Nwuá não se compadecer do sofrimento da avó, mas ainda a ama. Foi Akhdá quem a criou depois que toda sua família foi massacrada pelos últimos colonos terráqueos, antes que seus ossos virassem poeira.
Akhdá se apoia na bengala e anda até o meio do leito seco do rio, de onde uma árvore morta se ergue sobre um monturo de crânios. Ela solta a bengala e se escora no tronco, deixando-se cair de joelhos sobre os ossos esfarelados. Nwuá se abaixa ao lado dela e olha com tristeza para a avó.
— Você vai aceitar o Legado, Nwuá? — Akhdá pergunta com a voz trêmula.
Nwuá hesita em responder. Passa a língua pelos lábios endurecidos, sem coragem de dizer que deseja partir. A avó olha para ela.
— Eu te fiz uma pergunta, menina! — Akhdá rosna em meio a um acesso de tosse. — Eu sei o que você quer, mas... Se você for embora, Tnwuá morrerá.
— O planeta já está morto, vó.
— Ele renascerá se você aceitar o legado.
Num gesto brusco, Akhdá arranca o colar de ossos do pescoço enrugado e o estende para Nwuá, que o pega das mãos incrivelmente firmes da avó.
— Tome! Faça o que quiser. — Akhdá fala num tom duro, desistindo de tentar convencer a neta.
Seu corpo se enrijece e Akhdá arregala os olhos, antes de cair de bruços e levantar uma poeira fina do chão. Um fio de cuspe e sangue escorre da sua boca e umedece um pequeno círculo arroxeado no solo arenoso. No rosto dela, Nwuá vê congelar o sorriso aliviado de quem cumpriu sua missão até o fim.
***
Muhré se aproxima e vê Nwuá sentada com o corpo encostado no tronco da árvore morta. Ela se levanta quando Muhré chega e para ao seu lado, olhando para o corpo de Akhdá estendido no chão.
— E então? — Muhré pergunta, os olhos fixos no colar enrolado no punho de Nwuá.
— Ainda não decidi...
— Não era o que você queria? Vamos embora daqui, Nwuá!
— Sim, mas não é o que Akhdá queria. Ela me disse que Tnwuá pode renascer.
— E você acredita nisso?
— Não sei...
— Você tem até o entardecer pra me encontrar no hangar. — Ela aponta para a bengala caída no chão. — Tudo bem se eu ficar com isso? Deve valer bastante, e você já tem o colar...
Nwuá balança a cabeça, fazendo que sim, e Muhré não espera nem mais um segundo, pega a bengala e sai correndo.
Nwuá ergue a mão e olha para o colar que refulge em azul nos seus olhos. O título de Guardiã do Legado ressoa em sua mente com a voz da avó, e ela pensa nos anos que a velha teve que carregar aquele fardo sozinha, sem que tenha conseguido mudar nada.
“Agora é a minha vez?”, ela se pergunta e pensa se Tnwuá poderá mesmo renascer, sabendo que, ao usar o colar, não poderá retirá-lo mais, ficando presa ao seu legado e ao planeta até a hora da morte, assim como Akhdá.
Nwuá encara o brilho azulado que pulsa nos olhos vítreos engastados no crânio descarnado da cobra, buscando uma resposta no passado ancestral das guardiãs do legado. Uma torrente de imagens afoga Nwuá no fluxo de memórias desde o âmago do planeta, os tempos sobrepostos em camadas a tomam e ela sente, mais do que vê, as imagens do então jovem planeta Tnwuá, abundante de fertilidade e assombrosas formas de vida, em contraste com a superfície sem vida do presente árido e do futuro de morte que se anuncia.
Ela arfa, o peito oprimido pela decisão de carregar nas costas o peso de lançar a pedra final sobre o genocídio do seu povo, caso decida partir na última nave que deixará para trás o mundo estéril vagando nas bordas da galáxia. Nwuá pisca, deixando cair as lágrimas represadas, e sacode a cabeça violentamente, abre o colar com as mãos trêmulas e, num gesto impulsivo, envolve seu pescoço com ele e o fecha com um clique, selando seu destino.
“Pronto”. Nwuá olha para o corpo da avó e sorri com tristeza ao intuir que nunca teve escolha.
O brilho azulado do colar aumenta de intensidade, mas tudo continua morto ao redor de Nwuá. Nada mudou.
— Eu sabia que era inútil, vó... Agora vou morrer sozinha aqui — murmura e se senta ao lado do corpo de Akhdá, levando seus dedos até os olhos ainda abertos da velha senhora e fechando-os com delicadeza.
Ela ouve o estrondo do motor, vira-se e vê o rastro brilhante da última espaçonave riscando o céu de prata e partindo de Tnwuá. Silenciosamente, Nwuá se despede de Muhré, mas, de repente, ouve o grito da amiga atrás de si e se volta.
Muhré se aproxima devagar e respeitosamente deposita a bengala ao lado do corpo da avó de Nwuá. Depois, senta-se ao lado da amiga.
— Por que você não foi embora? — Nwuá pergunta.
— Sem você? — Muhré sorri. — Não tem graça.
As duas se abraçam em silêncio. Depois, ficam de mãos dadas olhando as primeiras estrelas iluminando o planeta moribundo. Sentindo as lágrimas novamente, Nwuá afaga os cabelos da avó, pensando em como gostaria de ouvir seus conselhos uma última vez. Ela não nota, mas, de seus dedos, pequenos pontos luminosos se desprendem e correm pelo rosto de Akhdá. Onde o fio de saliva de Akhdá tocou a terra, uma pequena poça de água límpida começa a surgir.
Então, tudo começa.
Saskia Sá é escritora, roteirista e diretora de cinema. Cria ficção especulativa e tem alguns contos publicados: “Lobo” na PULPA Newsletter, “Dias de pouco pão e zero sonho”, na Suprassuma, “Três desejos para o fim do mundo”, na Mafagafo e “Abissal” na coletânea “Violetas, Unicórnios e Rinocerontes”, da Patuá.
Edição: Moacir Fio
Revisão: Luísa Montenegro
Ilustração: Nathália Pimentel

