Madalena prometeu à sua filha a fantasia da moda para esse carnaval. Mas, ao se ver na véspera da festa disputando o último exemplar da Princesa Unicórnio, ela precisa deixar de lado velhos ressentimentos para encontrar uma solução. Em “Princesa Unicórnio”, Sabrina Roman tece uma narrativa criativa e surpreendente. Confira a seguir!
Princesa Unicórnio
Sabrina Roman
A embalagem de plástico fino escorregou mais um pouco da mão suada, e Madalena respondeu segurando mais forte. As sandálias também ameaçavam deslizar no chão coberto de confetes de papel. Flávia e Madalena se encararam: enquanto uma apertava os olhos, a outra trincava os dentes. Nenhuma sequer cogitando soltar a embalagem da última fantasia tamanho 10 de Princesa Unicórnio.
As duas já não se gostavam desde que a filha de Flávia ganhara a competição de corrida de saco, deixando Maria Fernanda em segundo lugar, chorando. O fato de que as meninas não se gostavam e competiam sempre que possível não ajudava a resolver a má impressão. Mas as duas quererem a mesma fantasia pro bloquinho do bairro, nenhuma das famílias ter comprado a tal Princesa Unicórnio até a tarde da quinta-feira gorda, e as duas mães terem colocado as mãos no último exemplar da dita cuja ao mesmo tempo... Isso já parecia piada do destino.
A vendedora voltou, também suada e um pouco sem ar, se espremendo entre os outros fregueses. Pela cara, ou ela tinha encontrado outra fantasia no estoque, ou tinha descoberto uma fada madrinha que resolveria o problema. E não é que era a segunda opção? Ou quase. Ela tentou puxar as duas de canto, mas o fato de nenhuma querer largar o pacote plástico dificultou o processo. Acabou resumindo a história aos sussurros ali, no meio de todo mundo, mesmo. A tal fada madrinha era na verdade uma Ninfa do Carnaval, entidade da qual nenhuma das mulheres tinha ouvido falar.
A vendedora começou uma longa explicação sobre a ligação da tal Ninfa com Baco e de como ela tinha ouvido falar no nosso carnaval e achado parecido com as antigas saturnálias. Mas Madalena mantinha metade da atenção no pacote que começava lentamente a escapulir de suas mãos, e tudo o que conseguiu entender foi que, por um preço módico, a Ninfa poderia duplicar a fantasia!
É claro que nenhuma das duas acreditou. Fadas madrinhas, vá lá. Saci todo mundo sabia como lidar. A própria família de Madalena tinha um tio que foi batizado pela irmã mais velha pra não virar lobisomem. Agora, Ninfa? Isso era pedir demais. Todo mundo sabia que não tinha disso no Brasil. Flávia resmungava que era coisa de europeu. E, internamente, Madalena concordava.
Ambas continuaram disputando o pacote entre si, até que a vendedora sacou sua arma para clientes extra problemáticos: uma caixinha de rapé. Enquanto as duas arqui-inimigas espirravam descontroladamente, outros clientes se afastavam num pulo. A vendedora agarrou o pacote todo amassado e o apertou junto ao peito, reclamando que devia vender a fantasia pra outra pessoa e deixar as duas sem nada, já que não queriam cooperar.
Elas se controlaram rapidinho e concordaram em ir até os fundos da loja ver a tal Ninfa e tentar resolver a disputa. E claro que era uma Ninfa de verdade. Com rosto de aparência jovem, pele oliva reluzindo mesmo na luz horrenda daquela lâmpada fria. Mas, apesar da coroa de flores de paetê sobre os cabelos volumosos, o que chamava mais atenção eram as sombras de asas douradas nas suas costas, como se existissem e ao mesmo tempo fossem apenas uma impressão. As asas faziam a Ninfa lembrar mais uma fada de sonhos do que a imagem que se tem quando se pensa nas filhas de deuses. O fato de ela estar cheia de purpurina no rosto e nos braços talvez ajudasse nessa impressão. E Madalena não sabia dizer se a purpurina era característica dela ou apenas brincadeira de carnaval.
Encarou as duas pelo que parecia uma vida inteira e mais a prorrogação, então começou uma conversa aos sussurros com a vendedora. O suspense foi pesado mas breve, e o preço para duplicar a fantasia foi dito. E uma nova briga começou.
Flávia berrando desaforos de um lado, Madalena rangendo os dentes de novo, as duas tentando alcançar a Ninfa ao mesmo tempo, enquanto a vendedora barrava o caminho, e a purpurinada ria. Ria porque sabia que não tinha conversa, ou pagavam o preço ou aquilo ali não era problema dela. Com a caixinha de rapé à vista, as duas voltaram a se controlar, e até a semideusa se afastou um pouco. A vendedora deu alguns minutos pra elas pesarem o que era mais importante e se decidirem.
Não é possível que uma simples fantasia de carnaval valesse tanto, não é? O primeiro impulso de Madalena foi achar a coisa toda ridícula e marchar de volta pra casa de mãos vazias. Mas ela tinha prometido pra filha que daria um jeito de conseguir a Princesa Unicórnio. E a menina tinha passado a semana toda se imaginando fantasiada, sonhando com o dia do bloquinho. Pela cara de derrota de Flávia, ela estava na mesma situação.
As duas se encararam e algo passou entre elas, algo que nem a Ninfa, que tinha milênios de experiência, conseguiu perceber. Eram anos de brigas, ressentimento, competição, encheção de saco. Mas, naquele momento, também surgiu uma espécie de compreensão entre as mulheres, uma certa familiaridade, nascida de saber o que era uma tripla jornada que não deixava espaço pra nada. Uma lembrança do que era ser uma menina sonhando com uma festa para a qual nunca seria convidada, com uma fantasia bonita que nunca seria sua, porque era cara, porque não lhe cabia, porque não era pra ela. Uma simpatia pelo que era ser mãe dessa menina. Um cansaço extremo. E um entendimento. As duas concordaram com a cabeça ao mesmo tempo. A vendedora sorriu com a decisão, entregou a fantasia para que a magia fosse feita e disse que esperaria lá fora.
A parte de duplicar a fantasia era fácil. Depois de tirar do plástico e desamassar um pouco, foi só sacudir a coisa toda e pronto: duas fantasias idênticas, tamanho 10, de Princesa Unicórnio. Se era tão fácil, qual era a do preço tão alto? A Ninfa sorriu pras duas, segurando uma fantasia em cada mão, e esperou pelo pagamento. Madalena e Flávia se encararam uma última vez antes de avançarem pra cima do ser mitológico.
Quando saíram do quartinho, cobertas de purpurina e carregando cada uma um pacote, as duas conseguiram até sorrir uma pra outra. Passaram pela vendedora e agradeceram a atenção. Madalena passou a fantasia no cartão, dividida em 12 vezes. Flávia fez um pix, comentando que já vinha juntando o dinheiro desde o carnaval passado. As duas comentaram com a caixa sobre o clima abafado e a chuva que viria mais tarde com certeza. E foram cada uma pra um lado, sem ressentimentos, sem mágoas, até com um certo carinho uma pela outra. É que é meio difícil matar uma Ninfa e não acabar meio amiga da cúmplice.
Mineira do interior do estado, Sabrina Roman divide seu tempo entre plantar, cozinhar, fotografar, e, finalmente, colocar no papel algumas das histórias que brotam na sua cabeça.
Edição: Luísa Montenegro
Revisão: Moacir Fio
Ilustração: Nathália Pimentel