O carnaval passou e agora o ano começa com mais um conto fantasmágico!
Em pleno carnaval de Olinda, Anjo e Demônio buscam uma maneira de quebrar a maldição que os persegue desde o carnaval anterior. Em “Os clarins de Momo”, Lucas Santana tece uma deliciosa e criativa história de carnaval. Confira a seguir!
Os clarins de Momo
Lucas Santana
— Tô flutuando! — gritou Robério, gaitando.
Duda olhou para ele. Estava mesmo. Era impressionante. Um demônio daquele tamanho a dois palmos do chão. Olhou, então, para os próprios pés: não tocavam mais o calçamento molhado, sem que fizesse qualquer esforço. Sorriu para Robério.
— Eu também!
Respiravam com dificuldade. O ar era rarefeito ali, tão quente que entrava nos pulmões rasgando. Robério enxugou o suor da testa vermelha e olhou para a companheira: brilhando sob o sol. Sorrindo daquele jeito, com as asas abertas, ela era linda demais. Verdadeiramente, um anjo. Deu um gole na cerveja, para criar coragem. A bebida estava quente, ele fez careta. Alguns metros à frente, uma plaquinha anunciava: três latão é dez. Mostrou para Duda.
Não precisaram se esforçar muito para chegar até lá: foram carregados pela multidão do bloquinho, que se embrenhava nas ruas estreitas de Olinda. Era tanta gente entuiada naquele centro histórico que o povo ia sendo carregado no ritmo da banda. A Ladeira da Misericórdia já se via dali: enorme, íngreme, igualmente lotada. O anjo e o demônio precisavam de combustível. Duda e Robério finalmente conseguiram sair do fluxo do bloco, pararam ao lado de um isopor, os pés sobre o calçamento cheio de mijo e confetes, e compraram dois latões. Deixaram o terceiro para pegar na volta. Só precisavam subir a Misericórdia para resolverem um negócio rapidinho. Logo retornariam; era um serviço simples.
— Tu lembra como é a casa, né? — perguntou Duda, gritando para se fazer ouvir em meio ao Alceu Valença que a banda tocava.
— Mais ou menos. Essas casas são tudo igual. Só lembro que era lá em cima.
Duda recolheu as asas e pulou nas costas de Robério, segurando-se nos chifres dele. Melhor ir carregada pelo demônio, que era corpulento e teria bem mais facilidade de cortar caminho pelo povo. Além disso, os cascos dele não escorregavam nos paralelepípedos. Ela poderia ir voando, mas aí arruinaria seu disfarce, atraindo uma atenção desnecessária.
— Finalmente vamos acabar com isso! — gritou o anjo em cima do demônio, dando um gole na cerveja, que já esquentava.
Estavam em cima da hora, o sol quase a pino. Só sabiam que precisavam chegar lá quando não houvesse mais sombras. Pelo menos foi o que o vendedor de loló fantasiado de bobo da corte tinha dito lá no alto da Sé.
***
A bruxa assistiu o bloco de sua janela. Viu o anjo e o demônio passarem direto, disfarçados de humanos fantasiados, procurando aquela casa. Lembrava-se deles do último carnaval. Eles nunca encontrariam o lugar, estavam bêbados demais, como estavam da outra vez, no ano anterior, quando pularam o muro baixinho do quintal para transarem escondidos atrás de uma árvore. Naquele ano, a bruxa, que nunca bebia, também tinha pulado o mesmo muro, mas foi para se esquivar da multidão de um bloco que passava. Foi assim que os três acabaram transformados, reunidos por uma coincidência no mesmo local e hora. Agora, um ano depois, ela estava ali para fechar um ciclo. Já o anjo e o demônio, se não encontrassem a casa a tempo, precisariam esperar mais um ano para tentar novamente.
Dois rapazes pularam o muro baixo da casa. A bruxa se preparou. Era quase meio-dia. A banda começava a tocar. Era a hora do sacrifício.
Aos sons dos clarins de Momo...
Os rapazes estavam vestidos quase igual. Sem camisa, para mostrar os músculos, shorts curtos e rasgados, maquiagem simulando feridas na pele. No pescoço, uma placa pendurada dizia: procuro carne fresca. Estavam fantasiados de zumbis. Aqueles dariam problema. Mas ela não se importava, só queria ir embora.
A bruxa saiu da casa e foi até o coqueiro do jardim. Eles não a viram, estavam bêbados e ocupados mijando nas roseiras. Ela enfiou os dedos na terra e sentiu a vibração do morro. Não tinha certeza do que estava fazendo, mas só teve um ano para pesquisar sobre aquela lenda. Tudo que sabia era que na casa mais torta, com a vista mais bela, com o coqueiro mais antigo, o carnaval era para sempre. Se os ritos fossem feitos na hora certa, quando o sol tocava toda Olinda, fantasias se tornariam realidade, e a realidade viraria fantasia. Quem estivesse naquele jardim ficaria preso no carnaval para sempre, condenado a vagar pelas ruas de Olinda com sua fantasia. E, como toda maldição, a magia só seria quebrada quando o ciclo fosse fechado.
Por sorte, ela era uma bruxa.
Sussurrou, acompanhando a multidão que cantava com a banda:
— Teus coqueirais, o teu sol, o teu mar, faz vibrar meu coração...
A cantoria, o grito dos ambulantes, os agogôs, os tamborins, os surdos, os ganzás, tudo vibrava num ritmo coordenado. Os clarins soaram como uma risada, como se zombassem dos humanos em festa.
Com um tremor dentro do peito, a bruxa sentiu sua magia se esvair. Agora, seu vestido preto, chapéu pontudo, unhas enormes e verrugas na cara não passavam de uma fantasia repetida do carnaval anterior.
Já os zumbis...
Quando a gritaria tomou conta da Ladeira da Misericórdia, a jovem fantasiada de bruxa já estava bem longe dali.
Lucas Santana é escritor, biólogo e paraibano — atualmente mora em Recife. Se inspira nas suas vivências como queer e nordestino para escrever sobre o horror e o fantástico que atravessam o cotidiano. É autor de “Terra alagada” (vencedor do prêmio Wattys 2019) e “O parque”, publicados de forma independente; dos livros “A trama da morte” e “Fruto podre” (Editora Corvus, 2023) e de contos nas revistas Suprassuma (Editora Suma, 2023), The Dark e na antologia Rocket Pages (Editora Rocket, 2022).
Edição: Luísa Montenegro
Revisão: Luísa Montenegro
Ilustração: Nathália Pimentel
Minha nossa, essa história foi sensacional. Eu espero - realmente espero, com todas as minhas forças - que só o vídeo tenha sido danificado, porque daí eu não acho um preço caro demais. Mas gente. Muito bom mesmo.