Em uma carta endereçada a seus superiores, um padre descreve a estranha experiência que teve com uma figura das trevas. Em “A cruz sob a árvore”, Guilherme L. A. Pimenta nos apresenta uma narrativa intrigante e com forte imagética. Confira a seguir!
A cruz sob a árvore
Guilherme L. A. Pimenta
V. Ex.ª Revma Arcebispo Alberto Isabel Roque,
Conforme minha promessa à V. Ex.ª Revma, relato em carta tudo o que presenciei naquela noite de março, para que a Santa Igreja encontre razão nas minhas palavras, já que eu mesmo não acredito nelas enquanto escrevo. Mesmo em papel e tinta, serão palavras tão absurdas como as imagens que tenho em memória.
Começo meu relato por meus últimos momentos de ignorância divina e plena sanidade. Eu e Diácono Fernando varríamos as escadarias da entrada principal do templo e falávamos sobre o tempo de forma contemplativa. Sentíamos a presença de Deus em nossas mãos e rostos nos últimos minutos de luz. Em retrospecto, sinto que, no pôr do sol, desviou Seus olhos para outros corações, pois foi o último momento em que tive paz no meu.
O mundo caiu em sombras, mas não era a noite. Era uma coisa cruel e enviesada, como se comandasse o crepúsculo. E tudo ao redor tornou-se um pouco mais soturno e profundo. Alertei o Diácono sobre a presença. Acompanhei suas feições se esticando e a pele perdendo a cor. Usei palavras apaziguadoras que serviram para nós dois.
A figura estava a alguns metros da escadaria, de frente para a entrada de nosso cemitério, talvez a dois ou três passos de passar pelo portal de metal ornamentado com anjos. Quanto mais nos aproximávamos, mais difícil era cobrir o espaço restante. Passamos pela entrada lateral por dentro do cemitério e não ousamos ficar a uma distância menor que dois braços.
Mesmo assim, Reverendo. Mesmo assim, era possível sentir aquele rosto respirando no meu. Afirmo que havia olhos, afirmo que havia uma boca. Tenho certeza em afirmar que havia na figura todos os elementos que compõem uma face encapuzada, embora nunca consiga descrevê-la.
E a voz… Ainda tento aplicar a lógica de Deus, sem sucesso. Desde a primeira vez em que os olhos parados em mim disseram “Permitam-me entrar”.
Diácono Fernando reagiu dando um passo agressivo, rosnando a Palavra na tentativa de intimidar a figura. Eu o contive, mas não tinha as ferramentas em mim para conter o que aconteceu em seguida. Seu corpo começou a tremer, descontrolado. Os olhos perdidos em algum lugar distante. Seu rosto se dobrou em desespero e as pernas vacilaram. Não tenho mais idade para segurar um homem, de forma que assisti impotente sua violenta queda. Pelo menos, depois de uma agonia aparente e inimaginável, ele parecia em paz e respirava.
“O coração dele nunca entenderia,” disse a voz. Não sei se a boca se mexeu, mas ouvi o sussurro em meu ouvido. “Permita-me entrar,” repetiu.
Entenda, Reverendo, eu nunca deixaria um ser de trevas como aquele pisar em solo sagrado. Essa foi minha primeira intenção, minha doutrina, meu dogma. E foi nesse pequeno momento de hesitação que presenciei o que, provavelmente, acometeu o pobre Diácono.
O primeiro instante foi de desorientação. Senti o solo afundar e o céu se derramar sobre mim. Depois disso, veio-me um desespero arrebatador. Assim como a terra, meus olhos afundaram. Assim como o céu, meus membros se esticaram. E então começaram a se contorcer e se quebrar em estalos, palmo a palmo, da ponta dos dedos até deslocar os meus ombros. A dor não vinha dos locais despedaçados, mas das partes de minha consciência. A dor virou a realidade e não me julgo digno para calvário como Nosso Senhor.
Mas me apeguei a Ele como única forma de salvação. Quando vi meus braços se contorcerem em ângulos pontudos e vi minhas costelas afundarem, quando senti meu coração ser espremido contra as costas. Apeguei-me a Ele quando os ossos do rosto estalaram e começaram a esfarelar. E o céu e o solo invadiram o que antes eram meus olhos para preencher a casca vazia deixada para trás.
Apeguei-me a Ele e consegui respirar de novo. Consegui sentir meus pulmões ainda presentes, pude enxergar uma luz mesmo que ela não fosse visível aos olhos. Essa mesma luz deu forma ao meu corpo e lá estava eu de novo, parado de pé em frente à figura, com Diácono Fernando desacordado ao meu lado. Apeguei-me a Ele e não terminei como o pobre homem no chão.
“O amor imortal de Deus me protege!”, bradei com orgulho da minha fé e com toda a potência de minha voz.
Mas não vi surpresa em seus olhos. Vi algo que ainda me assombra. Na criatura mais sombria que as sombras poderiam criar, vi esperança. “Sim, você é capaz de me entender. É capaz de permitir minha entrada,” foi o que respondeu.
“Como ousa? Você viu que não pode me vencer. Meu amor pelo Senhor só se fortalecerá,” foram as minhas palavras.
“Então você entende. O sofrimento e o medo da morte o fazem amar mais. Nossa mortalidade faz do amor imortal, não acha?”
Aqui, Reverendo, confesso meu pecado fundamental. Toda a dor que senti naqueles instantes fez meu amor por Ele brilhar mais forte. E cometi a blasfêmia de aplicar a lógica de Deus às palavras da criatura macabra.
“Eu não posso permitir um ser de trevas na casa do Senhor,” ainda resisti ao que meu próprio coração dizia.
"E não são todos os seres bem-vindos nesta casa? Não é isso que o Seu Senhor prega?"
Sim, Reverendo. Sei que esse argumento não abole meu pecado. Mas como Ele prega, não pude, mesmo na figura mais sacrílega que já presenciei em minha vida, ignorar uma forma tão pura de melancolia. Eram, sim, olhos indescritíveis, mas pediam clemência.
“Permita-me entrar,” repetiu. “Permito sua entrada,” respondi.
Algo mudou. Um peso sumiu. Quando a figura deu seus primeiros passos dentro do cemitério, não pude sair do lugar, apenas acompanhar seu caminho. O ser andou em linha reta, solene. Ficou claro que se direcionava para uma das covas mais simples. Mas também uma das mais intrigantes em meu tempo como responsável por este solo sagrado.
A figura parou em frente a essa cova quase imperceptível, marcada apenas por uma cruz de ferro arroxeado, bem ao pé de uma árvore torta e morta há anos. As histórias que correm não dizem quem enterraram ali e não havia nomes gravados no metal. Apenas os mais velhos contam de uma pessoa que cometeu um ato indescritível de comunhão com as trevas. E que essa pessoa só foi enterrada em solo sagrado por ter se arrependido e confessado. Mas que, mesmo assim, sua alma havia sido tocada com tanto ardor pelas sombras que a árvore torta morrera poucos dias após o enterro.
Até então, só pensava nessa história como mais uma das tantas lendas do povo. Afinal, ela foi enterrada aqui, portanto recebida pelos braços do Senhor. Mas, naquela noite, duvidei do impossível como nunca fiz. Sei que a figura balbuciou palavras que não entendi. Sei que se ajoelhou por um tempo e pareceu o completo oposto do que era antes. Pequena e vulnerável. Sei que, depois de pôr as duas mãos na altura do peito, esticou o braço e tocou a cruz.
A partir daí, não sei se poderia explicar o que aconteceu. Apenas posso contar o que presenciei com os olhos que Deus me deu. O primeiro dedo a encostar no metal se desfez como cinzas. Como em uma onda, as chamas avançaram pelas mãos, pelos braços e por toda a presença sombria. Não houve grito ou resistência. Talvez apenas um lamento que posso ter imaginado. O fogo se espalhou e tomou conta da árvore torta. A criatura foi consumida e, até que as chamas se extinguissem, não consegui mexer um músculo do meu corpo.
E isso é tudo que posso relatar daquela noite. Diácono Fernando recuperou a consciência no dia seguinte. A árvore em brasa cedeu e o ferro roxo da cruz se dobrou tal foi a violência do fogo.
Portanto, Reverendo, posso afirmar o que nossa Igreja sempre teorizou. Essas criaturas de trevas, mesmo que não envelheçam como nós, são consumidas sim em contato com a cruz de Nosso Senhor. Mas por que uma delas faria isso de própria vontade?
Acho que nunca terei evidências suficientes para chegar a essa resposta. A única informação que tenho encontrei em um registro antigo de um de meus predecessores. Ele registra a perda de uma placa identificatória em uma cruz de metal de uma de suas covas. O diário diz apenas:
Recuso-me a citar mais uma vez este nome. Mas, para que identifiquem a origem da placa caso encontrem, replico apenas o epitáfio gravado em sua superfície: “Nossa mortalidade faz do amor imortal”.
Espero que meu sucessor tenha mais sucesso nessa investigação. Em nome de Deus, aceito a punição a mim imposta.
E que Ele nos proteja da noite.
Designer de formação, Guilherme Pimenta descobriu tarde que preferia fazer imagens com palavras. Mas, desde então, não parou de escrever mais. Sua estratégia atual é jogar histórias para o alto e torcer que se conectem com outras pessoas flutuando por aí.
Edição: Wilson Júnior
Revisão: Luísa Montenegro
Ilustração: Nathália Pimentel